Uma taça de vinho por dia é prejudicial à saúde? Uma lição sobre a divulgação científica feita pela imprensa

 


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Um artigo científico publicado recentemente provocou alvoroço ao afirmar que não há limite seguro para o consumo do álcool. O estudo mostra o cuidado necessário ao analisar pesquisas veiculadas pela mídia.

 

A revista científica The Lancet, especializada em medicina, publicou recentemente um estudo que ganhou alta repercussão com uma afirmação polêmica: os pesquisadores declararam que não haveria nível seguro para consumo de bebidas alcoólicas. O estudo se tratava de uma meta-análise – uma técnica estatística utilizada para integrar resultados de diferentes pesquisas sobre o mesmo tema. Quase 700 estudos, conduzidos em 195 países, foram analisados com o objetivo de estimar a associação entre consumo de álcool e problemas de saúde.

Os resultados mostraram que os riscos para a saúde aumentavam a cada dose diária de álcool, enquanto que o nível de consumo realmente seguro seria igual a zero. O estudo deu origem a manchetes sensacionalistas na imprensa, que questionaram os verdadeiros efeitos benéficos de se tomar uma taça de vinho ao fim do dia. Pesquisas prévias já sugeriram que doses moderadas de álcool poderiam ter um efeito protetor contra doenças cardíacas, mas o novo estudo apontou que esse benefício seria compensado pelo aumento do risco de doenças como câncer e tuberculose.

Entender o impacto social do consumo do álcool ao redor do mundo é importantíssimo. Segundo a pesquisa, o álcool foi classificado como o sétimo principal fator de risco para morte prematura em 2016. No entanto, John Ioannidis, professor de prevenção de doenças da escola de medicina de Stanford, afirmou para o site de notícias Vox que o estudo comete um erro grandioso ao tirar o foco dos riscos do consumo excessivo de álcool e afirmar taxativamente que não há limite seguro para o consumo, o que não foi comprovado.

Porém, o estudo foi exaustivamente divulgado pela mídia ao redor do mundo. Poucos veículos, como o próprio Vox e o New York Times, tiveram o cuidado de analisar e criticar os resultados. Em geral, a imprensa meramente reproduziu as afirmações mais apelativas do estudo.

Causalidade x associação

O professor Ioannidis é um crítico contumaz dos estudos sobre nutrição, pois geram confusão no público constantemente. Isso porque os estudos que investigam os efeitos de hábitos alimentares em doenças crônicas são, em geral, observacionais. Ou seja, os pesquisadores rastreiam a alimentação de um grande número de pessoas ao longo do tempo, observam a taxa de prevalência de doenças e tentam encontrar relações entre esses dados. Essas relações alimentam hipóteses para pesquisas futuras.

Estudos observacionais não são controlados como experimentos. Nestes, os participantes são escolhidos aleatoriamente e separados em grupos que recebem diferentes intervenções. Esse tipo de estudo, sim, permite encontrar relações de causalidade – ainda que, no campo de estudos da nutrição, seja difícil isolar as consequências de apenas um nutriente, alimento ou bebida para a saúde.

Além disso, estudos observacionais também estão repletos de variáveis de confusão – as variáveis que não foram levadas em conta e que podem ser responsáveis pelos resultados finais. No estudo em questão, talvez os indivíduos que consumiam álcool e apresentavam sintomas de doenças, além de beber, também fumavam, tinham menor poder aquisitivo ou eram detentores de problemas genéticos, como apontou a matéria do New York Times. Há técnicas estatísticas para controlar o efeito de variáveis de confusão, mas esta meta-análise investigou estudos passados que não controlaram tais variáveis.

Logo, estudos observacionais na nutrição devem apenas gerar hipóteses e não ser a fonte de afirmações definitivas. O mesmo tipo de problema – associação confundida com causalidade – ocorreu na divulgação de outro estudo recente, que investigava a associação entre dietas low carb e mortalidade.

Esses episódios colocam em evidência o cuidado necessário na leitura da divulgação científica feita pela imprensa. A busca por manchetes apelativas pode se sobrepor aos resultados propriamente ditos. Por isso, nada melhor do que mergulhar nos estudos originais ou procurar a opinião de especialistas.