Malcolm Gladwell, autor de The Tipping Point, publicou afirmações polêmicas sobre os efeitos causados pela droga. A controvérsia ilustra o cuidado necessário ao discernir relações de associação e causalidade.
Um artigo de Malcolm Gladwell, publicado na revista The New Yorker, gerou um acalorado debate nos últimos dias. O jornalista, autor de The Tipping Point, Blink e outros best sellers, teceu afirmações contundentes sobre os efeitos da maconha, que geraram reações na mídia e na comunidade científica. Para quem trabalha com dados e métodos baseados em pesquisa, o caso ilustra a importância central de discernir relações de associação e causalidade.
Dentre outras afirmações categóricas, Gladwell estabelece uma relação causal entre o uso de cannabis e o aumento da probabilidade de acidentes de carro fatais. Além disso, o jornalista sugere que o uso de maconha causa aumento do número de crimes violentos e, por fim, escreve que o consumo da droga, em alguns casos, “causa doenças mentais”. Ele baseia suas colocações em um relatório da Academia Nacional de Medicina dos EUA e no livro “Tell Your Children: The Truth About Marijuana, Mental Illness, and Violence”, de Alex Berenson.
Como já abordamos por aqui, o estabelecimento de relações de causalidade é extremamente delicado. Em uma edição recente do podcast Naruhodo, o professor Altay de Souza comenta que os pré-requisitos para que se assuma uma relação de causalidade entre eventos são: temporalidade (um evento ocorre antes do outro), direcionalidade (se a relação entre A e B é X, a relação entre B e A não pode ser X) e reprodutibilidade (o resultado da relação precisa ser recorrente).
O canal The Upshot, do The New York Times, frequentemente esclarece controvérsias geradas pela divulgação científica realizada pela imprensa. No canal, Aaron Carroll – professor da Escola de Medicina da Universidade de Indiana – apresentou métodos científicos robustos que desconstroem as polêmicas afirmações de Malcolm Gladwell. Paralelamente, outros críticos mostraram que as colocações de Gladwell são baseadas em senso comum e não preenchem os pré-requisitos de causalidade.
O uso da maconha aumenta a ocorrência de crimes?
No artigo da The New Yorker, Gladwell baseia sua sugestão de que a maconha aumenta o número de crimes violentos a partir dos relatos do livro de Alex Berenson. Este, por sua vez, partiu dos resultados obtidos em Washington, primeiro estado norte-americano a legalizar o uso recreativo da cannabis. Gladwell comenta: “Entre 2013 e 2017, a taxa de lesão corporal qualificada aumentou 17%, quase o dobro do aumento registrado em todo o país, e a taxa de homicídios aumentou 44%, mais do que o dobro do aumento em todo o país”.
Já Aaron Carroll afirma que é necessário ser cético a respeito da presença de causalidade. Segundo o pesquisador, o melhor método para investigar essa relação é o controle sintético. Com ele, os pesquisadores usam uma combinação ponderada de grupos parecidos (no caso, estados similares a Washington) para criar um modelo de como seria o desempenho do crime nesses estados caso não houvessem ocorrido mudanças nas leis sobre maconha.
Benjamin Hansen, professor de Economia na Universidade de Oregon, utilizou o método para criar um grupo de comparação a partir de dados sobre homicídios perpetrados entre os anos 2000 e 2012. O pesquisador escolheu esse período porque ele começa após a queda do crime no início dos anos 90 e termina quando o estado de Washington votou a favor da legalização.
O modelo mostrou que o aumento do número de crimes, com base nas tendências observadas em estados comparáveis, seria previsto mesmo sem a legalização. Aliás, os números reais mostram que Washington teve, após a liberação, um aumento de crimes menor do que seria o esperado. De acordo com o artigo do New York Times, isso não é uma evidência de que a legalização reduz a criminalidade, mas definitivamente sugere que ela não aumenta essas taxas. Outros estudos concordam com tais resultados.
O consumo de cannabis provoca acidentes de carro?
Aaron Carroll comenta que a relação entre maconha e acidentes automobilísticos se deve, potencialmente, a um erro de observação. Um motorista bêbado pode ser identificado como debilitado de maneira mensurável, a partir do momento em que o nível de álcool no sangue está acima de uma determinada medida. Isso pode ser provado por meio de ensaios clínicos randomizados.
Já os testes utilizados para medir a presença de THC (princípio ativo da maconha) não medem o nível de debilitação. Eles medem se houve uso recente da droga. Assim, quando ocorre a legalização e mais indivíduos se tornam usuários, maior é o número de indivíduos que registram uso recente, ainda que não estejam debilitados. Logo, é natural que mais pessoas envolvidas em acidentes de carro tenham resultado positivo em um teste, mesmo que ninguém esteja dirigindo sob o efeito da maconha.
Benjamin Hansen também usou a abordagem de controle sintético na análise da questão e concluiu que as taxas de fatalidade relacionadas à cannabis não aumentaram após a legalização mais do que seria esperado segundo as tendências e o que se deu em outros estados.
E sobre esquizofrenia?
Gladwell, em seu artigo polêmico, afirma que uma das “conclusões inequívocas” do relatório da Academia Nacional de Medicina é que “o uso de cannabis provavelmente aumenta o risco de desenvolvimento de esquizofrenia e outras psicoses; quanto maior o uso, maior o risco”, em uma citação direta do documento.
No entanto, Ziva Cooper, uma das autoras do relatório e diretora de pesquisa na UCLA, declarou que houve má interpretação por parte de quem entendeu que os pesquisadores concluíram que a maconha causa esquizofrenia. “Isso foi declarado como uma associação, não uma causalidade”, segundo Cooper. “Nós ainda não temos evidência para indicar a direção dessa associação”, ela continua.
Nós, como comitê, também concluímos que uma história de uso de cannabis está associada a melhores resultados cognitivos em pessoas diagnosticadas com transtornos psicóticos. A omissão flagrante dessa conclusão exemplifica a natureza unilateral de alguns artigos. No entanto, a forte associação entre o uso de cannabis e a esquizofrenia significa que as pessoas com predisposição a fatores de risco para a esquizofrenia devem certamente se abster de usar cannabis. (Ziva Cooper)
Para quem ficou interessado na discussão sobre os efeitos da maconha, vale conferir os links apontados neste artigo. Já para quem trabalha com dados e busca um rigor científico em seus projetos, o caso mostra como devemos ter cuidado ao estabelecer relações de causalidade. Ao analisar um problema de negócio, é possível que variáveis meramente associadas aparentem uma relação causal. Para escapar dessa armadilha, vale sempre ter em mente os pré-requisitos de causalidade – e uma desconfiança sobre o senso comum.